Capítulo 02: O Herdeiro da Magia
- Não pode ser! Vocês têm certeza disso?! – os gritos exaltados de Karen Arkan ecoavam estridentes, vindos do quarto mais alto da Torre de Geffen.
- Lady Karen, receio que sim. Temos toda razão para acreditar que o jovem mestre Lucian deixou a morada de Geffen durante a madrugada.
- Quais são as evidências? – a bruxa tentava manter a calma.
- Os guardas... – hesitou por alguns segundos – os guardas da Torre e do portão Oeste foram encontrados desacordados...
- Feitiço do Sono? – Karen levantou uma sobrancelha e moveu-se inquieta na túnica roxa, intrigada.
- Sim, tudo indica que sim minha senhora.
A feiticeira mordeu o lábio de preocupação. Sabia muito bem o quão impulsivo seu sobrinho podia ser, e também entendia seus motivos, mas jamais imaginaria uma ação tão repentina de Lucian.
- Muito bem – soltou após alguns segundos de reflexão – chamem Aron e Liran aqui imediatamente.
- Sim senhora. – assentiram os dois sentinelas, retirando-se logo em seguida.
Karen virou-se e passou a observar passivamente através da janela de seu quarto. O céu azul e limpo carregava ainda a agradável brisa da manhã. Àquela hora da manhã Geffen brilhava em seu maior esplendor, a bela fonte central espumava, jorrando suas águas para todos os lados.
A Guilda dos Magos, próxima ao portão Norte, fervilhava com jovens aprendizes ousados o bastante para tentar a carreira arcana, estes que, em sua maioria, saiam decepcionados após o teste de aptidão. Do outro lado da cidade, mercadores, ferreiros e alquimistas disputavam sua clientela na base do grito, formando um verdadeiro caos nas ruas.
Cansada, a bruxa lançou um longo suspiro que explicitava sua profunda frustração. Moveu ligeiramente o olhar e alcançou o retrato de sua irmã, que jazia pendurado na parede. Karen fitou-a por alguns segundos, admirando sua beleza e felicidade. Seus olhos azuis e cansados encontraram os de Selena, que, como sempre, pareciam brilhar.
- O que você faria se estivesse aqui? – Karen já estava acostumada a esse tipo de pergunta. Já não era a primeira vez que se encontrava falando com o retrato de Selena, muitas vezes desabafando, noutras buscando ao menos uma resposta para seus tantos problemas. Mas o curto período de reflexão foi interrompido pelo bater na porta.
*Toc, toc*
- Sim? – a bruxa piscou e escondeu quaisquer possíveis sinais das lágrimas que estavam prestes a brotar em seus olhos. Mantendo a compostura, se levantou e ajeitou a túnica.
Uma mão forte girou a maçaneta e empurrou a porta, produzindo um leve ruído nas suas juntas desgastadas.
- Lady Arkan, você solicitou nossa presença? – O primeiro homem adentrou o quarto e se pronunciou. Vestia uma leve cota de malha com o brasão imponente de um leão folheado a ouro e uma calça de couro duro. Mais para baixo dos joelhos, resistentes grevas de prata cobriam suas canelas, seguidas pelos sapatos, também metálicos. Sir Aron aparentava uns vinte e cinco anos de idade e a espada que carregava na bainha em seu cinto indicava a vocação de cavaleiro. Seus cabelos desarrumados e olhos castanhos, bem como a curta barba mal feita, davam-lhe um ar intimidador e mal-humorado.
- Aron, Liran, queiram entrar por gentileza.
O segundo homem seguiu o primeiro e precipitou-se através da grossa porta de madeira, com um alaúde preso às costas. Aparentava a mesma idade do companheiro, mas tinha os olhos azuis e cabelos loiros e suas vestes de algodão eram mais populares, dando lhe um ar mais comum e simples, além de expressar uma personalidade mais despojada e até brincalhona.
- Perdoe-me minha senhora, mas os boatos sobre o jovem mestre Lucian são verdadeiros? – perguntou ele.
- Salve a cortesia, Liran, ambos sabemos que isso não é necessário, ainda mais em tempos como esses. E sim, Lucian cedeu às emoções e deixou a Torre de Geffen na noite passada. – informou a feiticeira, alternando o olhar entre os dois homens à sua frente.
O bardo balançou a cabeça negativamente, num gesto de decepção. O cavaleiro por sua vez direcionou o olhar para Karen, esperando ouvir o real motivo pelo qual haviam sido convocados.
- Me desculpem, mas meu tempo é curto, por isso serei muito objetiva.
Os dois assentiram com a cabeça.
- Vocês dois são meus guardas mais confiáveis e também meus grandes amigos. Conheço o apreço dos dois por mim e pelo meu sobrinho, e sei que não mediriam esforços para mantê-lo em segurança. E é justamente por isso que eu peço a vocês que encontrem Lucian e tragam-no de volta à Geffen.
- Mas, lady Karen, não acha que o garoto virá conosco de boa vontade, não é mesmo? - Questionou o homem de cabelos loiros, ainda que já soubesse a resposta.
- Não, tenho certeza que não. Mas autorizo os dois a fazer o necessário para trazê-lo de volta, nem que tenham que usar de força. – Karen enfatizou as últimas palavras para deixar claro que refletira muito bem antes de tomar aquela decisão.
- Assim será. – concordou o cavaleiro.
- C-Como quiser. – aderiu o bardo, ainda inseguro daquela tarefa.
- Muito bem então. Discutiremos as circunstâncias da missão em breve. No momento tenho algo de extrema importância para fazer.
Dessa vez foi ela quem deixou o cômodo, antes mesmo que os dois pudessem responder. Os passos apressados da bruxa ainda puderam ser ouvidos, cada vez mais abafados, até que cessaram completamente, instaurando o silêncio entre os dois homens. Liran respirou fundo e virou a cabeça, encontrando os olhos preocupados de Aron voltados ao infinito, pensativo.
Ambos tinham a mesma sensação de que aquela tarefa não ia ser nada fácil...
❂۞❂
O dia amanhecera lindo. O sol brilhava alto no céu, iluminando o monte Mjolnir e todos os seres que nele viviam. Um longo campo de grama esverdeada estendia-se até sumir de vista. Árvores e de todos os tamanhos cresciam na região, formando uma floresta desordenada e parcialmente aberta.
Pequenos Lunáticos – pequenas bolas de pêlos, brancas e fofas, como coelhos - corriam de lá para cá em busca de suas preciosas cenouras arco-íris, que raramente eram encontradas naquela região. Gelatinosas bolinhas cor-de-rosa, os Porings, pulavam alegremente, num ritmo nem tão rápido nem tão devagar, e eram tantos que chegavam a colorir o vale.
Os espertos Yoyos - criaturas que lembravam macacos de pequeno porte - pulavam rapidamente de árvore em árvore, agarrando-se uns aos outros com suas caudas desenvolvidas, no que mais parecia ser um pega-pega de primatas.
Até os mal-humorados Louva-a-deus, enormes gafanhotos com pressas, não resistiam ao clima de alegria que brotava na região com o nascer do dia, e pulavam satisfeiros, floresta adentro, indo fazer o que quer que seja que esses bichos fazem.
O calmo farfalhar do vento nas árvores fazia cair uma ou duas nozes de vez em quando, que não demoravam a ser capturadas com gosto pelos Kokos - pequenas criaturas dentuças e peludas, semelhantes aos esquilos.
Muito embora o Monte Mjolnir emitisse uma alegria contagiosa, toda aquela vida não interessava à Lucian. Aquele enorme organismo pulsante pouco representava para o misterioso mago, que permanecia focado exclusivamente no seu objetivo.
Lucian caminhava calmamente, porém não devagar. Mantinha uma expressão reservada e séria, talvez até assustadora. A longa túnica prateada da Guilda dos Magos cobria-lhe do pescoço ao tornozelo, deixando levemente à mostra traços de sua camisa e calças cinza.
Suas mãos hábeis descansavam dentro das luvas cinza-escuras; uma segurava firmemente seu curto cajado de madeira e a outra permanecia aberta e relaxada junto ao seu corpo. O cristal na ponta do bastão parecia brilhar intensamente refletindo a luz, diferentes tons de verde e azul cintilavam conforme o mago se movimentava, agitando levemente o pedaço de madeira para cima e para baixo num ritmo tranqüilo.
Cerrando seus olhos contra a claridade, fitou atentamente o caminho tortuoso à sua frente. Constatou que seu objetivo deveria estar próximo. Uma refrescante corrente de ar vinha daquela direção, agitando periodicamente seus cabelos brancos e desajeitados. Embora mal tivesse completado seus 17 anos, o garoto aparentava muita sabedoria e conhecimentos incomuns à sua faixa etária.
Lucian observou com curiosidade os estranhos Caramelos – criaturas que mais lembravam porcos-espinhos -, enquanto estes se aproximavam dele, cheirando o ar ao redor e movendo-se com cautela. A possibilidade de um ataque passou pela sua mente, mas assim como surgiu foi descartada na hora.
- “Não tenho tempo para essas criaturas insignificantes, preciso me tornar mais forte.” – pensou, retomando a caminhada.
Finalmente chegando ao seu destino, olhou ao redor. Com certeza tinha deixado a região mais superficial do vale e entrado mais profundamente na floresta. Sabia que o Monte Mjolnir ficava ao Norte de Prontera, portanto mais algum tempo de caminhada na mata densa e já seria capaz de vislumbrar a silhueta da capital de Rune-Midgard. Era para lá que ele estava indo desde que escapara de Geffen, na noite retrasada.
Curioso, avaliou o novo cenário, observando com calma cada parte da floresta. Flores enormes erguiam-se ali, num festival de cores e aromas, grandes o suficiente para que ele coubesse dentro de uma delas. A vegetação se abria num caminho confuso, repleto de grama e outras plantas rasteiras. Percevejos e Besouros-Chifre - monstros mais dóceis que não chegavam a preocupar o mago experiente - caminhavam despreocupados por ali.
Lucian continuou sua caminhada, já alerta para possíveis ataques. Passo a passo se aproximava mais do coração do Monte Mjolnir, e sabia que quanto mais próximo dessa região, mais perigosos os inimigos.
Continuou avançando sem hesitar, esse era seu objetivo: testar suas habilidades.
Alguma coisa se moveu nas proximidades, e o som produzido deixava claro que não era inofensiva. Um guincho agudo e estridente saía da boca do monstro, ainda oculto na relva. Lucian virou-se empunhando com determinação o cajado brilhante, mas a perigosa Argiope não pareceu nem um pouco assustada. O enorme inseto de cor vermelha saiu da toca, semelhante a uma taturana, remexia-se furioso, seus olhos negros e redondos fixados na figura do mago a sua frente.
A estranha lagarta estava a poucos metros, e partiu para o ataque. Lucian manteve a calma, acompanhando a figura ameaçadora de proporção semelhante à de um ser humano adulto, suas pequenas patinhas movimentando-se numa velocidade surpreendente, cobrindo aos poucos a distância entre os dois.
- Hmpf. – bufou, sabendo o que viria a seguir.
O mago dobrou levemente os joelhos e apontou o cetro para sua adversária em movimento. Concentrou-se e focou sua energia mágica no cajado, invocando silenciosamente o elemento do Fogo.
- Barreira de Fogo! – exclamou, gesticulando movimentos circulares com a mão livre. O cajado emitia uma forte luz vermelha, e com um levantar do mesmo uma enorme parede em chamas ergueu-se, bloqueando o caminho do ser rastejante.
Talvez por coragem ou simplesmente por burrice, Argiope continuou avançando, chocando-se ferozmente contra as chamas e danificando seu corpo com fortes queimaduras.
Lucian já previa isso, era comum que monstros agressivos como Argiope ignorassem a razão e seguissem apenas seus instintos assassinos. Até onde aprendera, ela iria continuar batendo de frente com a coluna de fogo até que a mesma se extinguisse. Já entediado, preparou-se para o golpe final. Novamente mentalizou o feitiço, juntando energias no cajado e clamando pelo auxílio do Fogo.
- Lanças de... – mas outro guincho semelhante ao primeiro, vindo de algum lugar da floresta, chamou sua atenção. Atento a quaisquer manifestações inimigas, sentiu a presença de outro monstro nas redondezas, e não demorou muito até que a suspeita se consumasse. Lucian esquivou-se por um triz do jato roxo de veneno, que passou zunindo sobre seu ouvido direito. A autora do ataque - outra Argiope - surgia das folhagens próximas.
Organizou o pensamento e refletiu por alguns segundos. Sim, agora podia compreender, o guincho nada mais era que um pedido de reforços, e não tardou até que uma terceira Argiope, como que em resposta, irrompesse da mata virgem. Lucian logo se viu cercado por três inimigas, uma delas ferida, porém ainda mais enraivecida.
- “Droga!” - pensou, mordendo os lábios. Aprendera que a maior fraqueza de um mago era o tempo necessário para conjurar magias, durante esse tempo tinha que ficar parado e concentrado, mas ao mesmo tempo era complicado fazê-lo durante uma batalha sem sair ferido. Sabia também que essa fraqueza podia ser superada com facilidade quando se enfrentava um único inimigo, pois existiam diversos artifícios capazes de retardar e paralisar o avanço dos inimigos – tal como a barreira que usara poucos segundos atrás -, mas lutar contra três ao mesmo tempo era outra história. Para completar, as chamas que retinham a primeira Argiope tinham um tempo determinado de duração, e logo se extinguiram, deixando passar a lagarta possessa.
- Então vocês querem brincar? – gritou sem esperar resposta, numa forma de desafiar seu próprio potencial e talvez até auto-incentivar. As enormes lagartas por sua vez pouco aderiram à provocação e continuaram o avanço, chegavam cada vez mais perto.
– Vamos brincar então! – Lucian agora levantava o braço esquerdo, agitando-o. Uma leve brisa formou-se do rodopio insistente, dando lugar a um círculo de chamas. Sua mente exclusivamente focada no fluxo de magia, seu pensamento ardendo nas labaredas flamejantes: ele e o Fogo tornaram-se um durante aqueles poucos segundos; e numa separação brusca e repentina, cinco lanças de mais ou menos um metro de largura emergiram do círculo de fogo, queimando intensamente no ar.
- Lanças de Fogo! – tentou mais uma vez, seguro de si mesmo.
Girou, apoiado em um dos calcanhares, ainda com o cajado brilhante em suas mãos, e assim que parou as cinco lanças de fogo movimentaram-se, esperando as ordens de seu criado. Estas que vieram logo em seguida; com um balançar da sua mão esquerda o mago ordenou que as setas flamejantes avançassem sobre seus inimigos.
Ainda que muito velozes duas das lanças não atingiram seus alvos e apenas a inimiga que já estava ferida recebeu o ataque. A Argiope começou a se contorcer e debater, agonizando em meio às chamas mágicas, poucos segundos depois, o sofrimento cessou e a grande lagarta encontrou seu fim.
As outras duas se esquivaram, rolando feito troncos para o lado. Lucian sorriu ao perceber que seu plano funcionara, essa era exatamente a intenção do jovem mago, que aproveitou a brecha para correr na direção contrária da luta, numa tentativa de escapar.
As outras duas, ignorando a companheira morta, puseram-se a perseguir o garoto em fuga.
A floresta parecia não ter fim e Lucian tentava manter o ritmo, muito embora a trilha ficasse cada vez mais fechada. Segundo seus cálculos, devia estar próximo do fim do monte Mjolnir, tinha que continuar correndo, sem olhar para trás. Podia sentir as inimigas atrás de si, sedentas de raiva.
O mago limpou o suor que teimava em escorrer-lhe pela testa, mesmo em desvantagem ele não deixava seu orgulho de lado, e mantinha a mesma expressão calma e até arrogante.
Pulou uma pedra, contornou uma flor gigante e passou raspando num galho afiado, manobra que lhe custou um punhado da capa.
- “Antes rasgar a roupa do que minha face!” – pontuou aliviado.
Mas a vegetação parecia lutar contra Lucian, fechando-se cada vez mais e barrando o avanço do mago. As manobras agora exigiam demais dele, que já perdera o ânimo para se esquivar de todo e qualquer empecilho; agora simplesmente ia de encontro à plantas menores e galhos mais finos, levando-os consigo numa fuga descontrolada. Chegando então há um grande tronco, tomou impulso e pulou; mas os pés cansados protestaram, e ele tropeçou, deixando cair o cajado, que rolou poucos centímetros fora de seu alcance.
- Mas o quê...? – Lucian amaldiçoava sua falta de sorte, tentou se levantar e mover a perna, mas percebeu que foi em vão; parecia presa numa espécie de teia, uma substância resistente e pegajosa grudara seu pé direito ao chão.
- “Não me diga que é um...” – o pensamento assustou-lhe, e rapidamente virou os olhos, rezando para que não estivesse certo. Porém, pela primeira vez no dia, Lucian parecia ter acertado em cheio: não que isso fosse uma coisa boa. - “Argos!” - terminou a sentença, pálido.
Nosso protagonista orgulhoso se viu observado pelos três assustadores olhos da criatura mediana em forma de aranha, enquanto podia ouvir o leve som produzido pelo rastejar das duas Argiopes no seu encalço.
O Argos movia-se lentamente, como se a demora fizesse aumentar seu apetite. Lucian procurou manter a calma, era essencial que não entrasse em pânico numa situação como aquela. Fazendo força, lembrou-se das antigas aulas na Torre de Geffen, da voz de sua tia ensinando-lhe sobre os diversos tipos de monstros que viviam em Rune-Midgard... De repente uma luz surgiu na sua mente, conseguiu lembrar um fato importantíssimo sobre os Argos; mas a informação era inútil sem seu cajado.
A boca da aranha já salivava, pressentindo o delicioso jantar, e as lagartas mantinham o mesmo ritmo, ainda no encalço do mago.
Lucian alternava seu olhar, do Argos para o cajado, do cajado para as duas Argiopes e das duas Argiopes de volta para o Argos. Era uma situação complicada, constatou refletindo. O pedaço de madeira que podia lhe salvar estava tão perto... e ao mesmo tempo tão longe! Desistindo de alcançar seu cetro, reuniu todas as forças que lhe restavam na perna, tentando escapar da teia pegajosa. Nada, o pé mal se moveu.
Fechou os olhos, clamando por alguns segundos livres de toda a pressão. Antes que pudesse perceber foi envolto num flashback, não sabia direito o porquê, talvez estivesse prestes a morrer...
❂۞❂
- Muito bem Griff, a resposta está certa! – a mulher de cabelos castanho-claros e curtos parabenizou o estudante com um leve movimento de cabeça e voltou sua atenção para o resto da sala:
- Ótimo classe, agora que tal uma questão mais... – parou procurando pelo adjetivo mais apropriado - ...elaborada?
Ninguém respondeu, afinal, todos sabiam que não era verdadeiramente uma pergunta, a professora tinha essa mania de lançar questões sem a mínima intenção de esperar pela resposta.
Também ciente de que não precisava de autorização, a bruxa continuou:
O que um mago pode fazer se, por ventura, perder seu cajado?
Dessa vez a sala de aula foi tomada pelo completo silêncio, as questões até agora tinham sido fáceis para a maioria dos jovens magos ali presentes, mas agora ninguém parecia saber a resposta, ninguém exceto ela, é claro.
- Pois não, Safira? – A menina sentada no fundo da sala, percebendo que a palavra lhe tinha sido concedida, ajeitou levemente seus óculos, atraindo os olhares curiosos para os seus lindos olhos cor de safira e balançou com elegância os cabelos, igualmente azulados em tom e brilho. Satisfeita e convencida, abriu um longo sorriso:
- Professora Maria, todos sabemos que um mago não é nada sem um objeto condutor de magia, seja ele uma varinha, cetro, bastão, cajado, livro, etc... Os objetos condutores servem como vínculos diretos entre a magia interna e a magia externa, além de serem fortes captadores dos elementos da Natureza.- todos na sala pareciam hipnotizados pela formosa menina, todos menos Lucian, que apenas assimilava a resposta num canto da sala, oculto em sua túnica. - Dessa forma um mago desprovido de tais instrumentos não pode realizar feitiços ou coisas do gênero.
A professora pareceu aceitar a resposta, mas ainda deixou transparecer uma ponta de decepção, um leve tom de descontentamento.
- Entendo. – começou ela – Todos concordam com a senhorita Wiccan?
- Eu... discordo... – a voz de Lucian deixou-se soar para a surpresa de todos na sala, inclusive da professora. Safira por sua vez pousou o olhar no jovem mago, nervosa por ter sido questionada.
Os olhos da Prof.ª Maria brilharam ao ouvirem as palavras de protesto, era exatamente isso que ela esperava ouvir.
– Qual a sua teoria então, jovem Arkan?
O simples mencionar do sobrenome de Lucian costumava deixar um clima de inquietação no ar. Alguns alunos se entreolharam, tensos.
Lucian não gostava da professora, tampouco fazia questão de se mostrar; nada daquilo lhe interessava. Mas alguma parte do seu ser fazia questão de desmentir aquela garota, o simples olhar dela lhe incomodava, seu perfume lhe incomodava, apenas o nome Safira, ela não saía de seu pensamento...
- A meu ver, professora Cowrel – Lucian procurou retribuir chamando-a pelo sobrenome, utilizando um tom sarcástico – os condutores mágicos, tais como os cajados, são apenas parte do arsenal de um mago. Vejam bem, não estou questionando a importância dos mesmos, apenas pontuando que um mago é muito mais que um pedaço de madeira. – a observação final provocou pequenos risos na sala, o que instigou ainda mais a raiva da garota de cabelos azuis.
- Espera aí, eu não disse que os magos são...! – mas o protesto foi interrompido pela professora.
- Um argumento interessante, Lucian. Queira por gentileza explicar o que exatamente você quis dizer com isso? – dessa vez a professora assumia um ar mais formal, tentando deixar clara sua imparcialidade no assunto; ainda que fosse fingimento.
- Bom, eu acho que o próprio mago é um condutor natural. Todos sentimos o fluxo mágico dentro de nós mesmos, todos nós moldamos a magia, não é mesmo? – ninguém respondeu, então ele continuou – Olha só, a minha tia me contou que os Elfos não utilizavam nenhum outro condutor além de seus próprios corpos, em sintonia com a Natureza...
- Bobagem! Não se pode usar uma lenda como argumento! – Safira protestou novamente, mas novamente foi ignorada; o interesse de todos nas palavras de Lucian era inquestionável.
- Na verdade existem estudos cientificamente fundamentados que comprovam a existência dos Elfos, a própria magia é uma prova irrefutável – retrucou o jovem mago, sem paciência.
- A magia é resultado dos estudos e do conhecimento coletados ao longo de milhões de anos da humanidade, do trabalho árduo de nossos ancestrais! – a discussão já assumia outros patamares.
- Nossos ancestrais? Então você está tentando dizer que o seu bisavô contribuiu para o conhecimento arcano? Faça-me o favor!
Ao ouvir as últimas palavras do mago, a silhueta de Safira mudou completamente, assumindo um ar mais agressivo e nervoso do que antes, ficou claro que o assunto era muito delicado e mexia muito com o sentimental da bela maga.
Antes que as coisas ficassem ainda piores, a professora decidiu intervir:
- Muito bem, muito bem. Vamos acalmar os ânimos, certo? Isso é apenas uma polêmica gerada em cima de uma pergunta, não há por que se exaltar. – a professora censurou a atitude dos dois alunos com um olhar severo. – Continuaremos a discussão amanhã; parece que acabamos passando do horário e eu nem percebi.
Os estudantes concordaram e deixaram o assunto de lado, começaram então a arrumar suas coisas e deixar a sala de aula, um a um... Menos aqueles dois que continuavam numa disputa silenciosa, os olhos dele fixados nos dela e vice-versa. Finalmente, um deles cedeu. Safira arrumou rapidamente as suas coisas e precipitou-se em direção a saída; não sem antes dizer umas palavrinhas para Lucian.
- Você acha que é um gênio não é mesmo? – ele não respondeu, apenas continuou olhando-a nos olhos – Vou mostrar para todo mundo que um sobrenome não dita quem pode ou não ser um gênio, você vai ver. – E a menina continuou seu caminho, deixando a sala sem perder a compostura num caminhar calmo e charmoso.
Lucian permaneceu sentado, o cheiro que pairava no ar ainda era aquele mesmo cheiro, o perfume de Safira parecia confundi-lo, tira-lo do sério... Naquele momento só tinha certeza de uma coisa: jamais perderia para ela.
❂۞❂
Subitamente a memória cessou, e Lucian se viu livre do curto transe. Muito embora tivesse revivido as lembranças de uma aula inteira, poucos segundos se passaram de fato.
Seus olhos foram de encontro ao cajado que continuava fora de alcance. Agora entendia qual era a razão de tudo aquilo, a memória remetia exatamente àquele tipo de situação; e se ele não escapasse apenas provaria que Safira estava certa.
Movido única e exclusivamente pela sua força de vontade, Lucian tentou canalizar seu poder mágico na palma da mão direita, fazendo um esforço duplo para não deixar-se abalar pelo Argos, que já estava próximo o suficiente para que seu cheiro desagradável fosse captado.
Pouco a pouco podia sentir a energia agrupando-se em sua mão: estava funcionando. Mas alguma outra coisa parecia impulsionar aquele processo, direcionando a energia com mais facilidade. Lucian se deu conta de que o colar de sua mãe ardia em seu peito, como se estivesse queimando, e não tinha dúvidas de que o objeto estava influenciando beneficamente no feitiço.
Uma vez que julgou a quantidade de energia suficiente, Lucian levantou a palma da mão em direção ao seu cajado e gritou:
- Venha!
O pedaço de madeira permaneceu imóvel durante os primeiros segundos, porém passado um curto período de tempo, pareceu responder com uma leve tremedeira. Mais alguns segundos e o mesmo já estava pairando no ar; com um esforço final Lucian concentrou-se ainda mais e exclamou novamente:
- VENHA!
O cajado voou veloz até a mão do dono, que o recebeu satisfeito e aliviado.
Mas quem disse que o Argos sentiu-se intimidado? A criatura agora acelerou o passo, ao ponto de estar a menos de um metro de sua presa. Lucian por sua vez agiu depressa, proferiu uma frase na língua arcana e libertou sua perna, mas era tarde demais para correr; o Argos estava bem na sua frente...
- TOMA ESSA! – exclamou o jovem mago, com o cajado em mãos, golpeando com força a região dos olhos do seu inimigo.
O monstro surpreso pela reação da presa não conseguiu esquivar e foi atingido em cheio.
Argos recuou aturdido, a aranha agonizava de dor, agitando suas patas dianteiras freneticamente no ar e abrindo e fechando os três olhos com dificuldade. Sim, as aulas tinham sido muito úteis, ele se lembrara de que a região mais sensível do Argos era aquela aonde se encontravam os olhos. Mas, mesmo assim, sabia que não tinha muito tempo até a criatura se recuperar; a prioridade agora era acabar de vez com suas perseguidoras iniciais.
Sem mais delongas, Lucian focou sua atenção nas duas Argiopes, que atravessavam com dificuldade o grande tronco.
Numa tentativa desesperada, suplicou novamente pelo apoio do Fogo, invocando palavras há muito esquecidas.
- Bolas de Fogo! – Fincou seu cajado brilhante no solo úmido da floresta; o Fogo pareceu conceder-lhe seu poder. Dotado de uma habilidade sem igual, Lucian criou duas esferas em chamas, cada qual em uma palma de suas mãos, e, com violência, atirou-as contra as inimigas, que não conseguiram esquivar devido a alta velocidade dos projéteis flamejantes e foram atingidas em cheio.
Lucian ficou aliviado ao ver as duas Argiopes envoltas nas chamas, queimando até que não passassem de meras cinzas. Tudo estava acabado; ou pelo menos este fora seu pensamento imediato.
Antes que se permitisse relaxar, o mago virou-se a tempo de esquivar da mordida desengonçada do Argos, que ainda estava cego de um dos olhos. O jovem podia sentir a exaustão percorrendo seu corpo, uma exaustão diferente de cansaço físico, ele sabia bem o que era aquilo – usara demais seus poderes mágicos, e o abuso dessa energia levava a um cansaço desigual e, em situações críticas, até a morte.
Com dificuldade começou a correr em direção ao que parecia o fim da floresta, mas, chegando lá quase caiu no chão, tamanha sua surpresa. De fato aquele era o fim da floresta, mas o caminho à sua frente era intransponível; um barranco de altura considerável erguia-se na frente de Lucian.
No calor do momento, censurou sua imprudência por ter ido até aquele local perigoso sozinho... No que estava pensando afinal?
Seu momento de reflexão foi interrompido pela chegada do Argos raivoso. Ou melhor, dos Argos raivosos, pois, aparentemente, a aranha inicial tinha alguns companheiros, e resolveu chamá-los para partilhar do prêmio.
Lucian engoliu um seco, realmente não podia se salvar daquela situação fazendo uso de sua magia, estava além da sua capacidade naquele estado. Receoso ele retirou algo de sua capa, aparentavam ser belas asas de borboleta. Ele fitou as duas coisinhas com atenção, tinha que decidir o que fazer, e rápido.
- Se eu usá-las, salvarei minha vida... - mas o orgulho falou mais alto novamente - No entanto, não quero voltar para lá. Ou melhor, não posso voltar para lá! Principalmente como um fracassado que quase perdeu a vida por imprudência... - complementou. O fato é que as chamadas Asas de Borboletas eram itens mágicos, capazes de teletransportar seus usuários até a Cidade Natal dos mesmos, no caso de Lucian, Geffen.
Mas aos Argos pouco interessava o dilema do rapaz, não queriam saber de delongas. Juntos eles se posicionaram e miraram seus jatos de veneno no inimigo.
Lucian rapidamente guardou as asas de volta na túnica e retirou outro objeto, este parecido com uma pedra, uma espécie de pepita azul que brilhava intensamente. E, como uma criança que quebra um brinquedo, o mago despedaçou a frágil pedra em suas mãos, deixando que o pó produzido por ela caísse levemente sobre o cristal em seu cajado. Por mais que a ação parecesse lenta, tudo aconteceu incrivelmente rápido, como se ele tivesse (e de fato tinha) anos de prática naquilo.
- Escudo Mágico! – um campo de força rosado ergueu-se envolvendo Lucian, protegendo-o contra os golpes. Porém, a quantidade de Argos era demais para uma só defesa, e, aos poucos o escudo foi enfraquecendo. Os golpes eram fortes, e o corpo de Lucian reclamava dolorido, clamando por descanso. Chegou ao seu limite; a defesa finalmente cedeu e o mago acabou atingido de raspão pelo último dos jatos de veneno, perdendo o equilíbrio e caindo barranco abaixo...
Lucian podia ouvir de longe os guinchos pouco satisfeitos dos Argos, não sabia o que estava acontecendo, apenas que todo seu corpo doía de uma forma como nunca sentira antes. Com a única certeza de que estava à beira da morte, o jovem feiticeiro piscou os olhos e, como num passe de mágica, uma figura masculina de cabelos loiros surgiu na sua frente, seus olhos verdes brilhavam e sua expressão era calma e acolhedora.
“Um anjo...? Estou no céu...?” - pensou Lucian antes de perder a consciência. E a imagem encantadora perdeu-se na imensidão de sua mente, dando lugar para sonhos e memórias conturbadas, que iam e vinham sem parar...
Nenhum comentário:
Postar um comentário