Capítulo 01: Numa Noite Sem Luar

Lucian remexeu-se relutante. Pousou os olhos inchados e semicerrados no despertador de madeira que ousava atrapalhar seu descanso.
Sonolento, fazendo força para não se deixar despertar completamente, tentou ignorar o alarme que soava incessante ao lado. O aparelho moldado com magia cantarolava insistente, como uma oração desafinada e histérica.

Vamos já é hora, é hora de ir embora
Mago preguiçoso, levante já, agora!
Chega de hesitar, chegou a tua hora
Mago preguiçoso, levante já, agora!

Enfiou a cabeça no travesseiro, tentando inutilmente livrar-se da melodia. Nada. Virou uma, duas vezes. Chegou a cobrir-se totalmente com a coberta marrom que lhe mantinha quente e aconchegante. Já nervoso, tapou os ouvidos, outra tentativa falha, a maldita música encantada já tocava dentro de si. Por alguns segundos, odiou com todas forças a existência da magia, aquela mesma magia que agora forçava-lhe a deixar o leito extremamente agradável e encarar a noite fria e sombria de Geffen. Por que diabos tinha que se levantar tão cedo? A impressão que tinha era de que havia acabado de deixar na cama, no máximo 10 minutos atrás...

Não adianta os ouvidos tapar, ou a magia odiar
Saia desta cama, já, fora!
Mago preguiçoso, é hora de levantar
Mago preguiçoso, levante já, agora!

Talvez não 10 minutos, mas 2 horas. O despertador ainda gritante marcava 4:00 da madrugada. De fato, era cedo. Cedo talvez para uma pessoa normal, vivendo uma vida normal. Mas não para Lucian, não para aquele mago de Geffen cuja fuga fora planejada para aquela mesma noite sem luar. Sim, tinha que acordar e partir o quanto antes, sabia que se prolongasse a fuga, mesmo que por apenas 1 hora, já seria suficiente para que fosse descoberto.

Desistiu de lutar e sentou-se. Proferindo palavras desconhecidas numa língua desconhecida, ordenou que o aparelho parasse. Dito e feito, o relógio cessou sem objeções, mesmo porque já havia vencido a guerra. Lucian levantou-se ainda desconcertado, amaldiçoando o estúpido aparelho, a estúpida música e toda aquela estúpida situação.

Agora mais acordado, lembrou-se das circunstâncias da tarefa. Criticou severamente sua falta de postura ao permitir-se dormir por tanto tempo, mas sabia que não havia o que fazer senão focar no objetivo a ser cumprido. Já vestindo a tradicional túnica dos magos e portando o cajado retorcido de madeira em mãos, olhou ao redor. A mala, que descansava feita sobre a mesa ao lado, parecia demasiadamente grande. Pensou duas vezes e resolveu deixá-la lá, não podia perder tempo: não com coisas banais.

O mago abriu a velha porta de madeira que separava o cômodo e o corredor, produzindo um leve rangido que se propagou por toda torre.

- “Droga!” – censurou sua falta de prudência novamente. Saiu do quarto, espiando a longa escadaria que circundava os andares abaixo.

Silêncio. Sem luzes, nem vozes. – “Menos mal” – agradeceu ao menos aquele momento de sorte e desatou a descer as escadas, dessa vez cuidadoso ao extremo.
Minutos depois, chegou ofegante ao hall de entrada. Enormes estátuas de magos e bruxos permaneciam lá, estáticas e melancólicas. Lucian vislumbrou uma a uma, impassível. Nunca tinha realmente prestado atenção naquele cenário, no chão de pedra lisa, nas enormes janelas igualmente distribuídas, nas tochas bruxuleantes que brilhavam incansavelmente iluminando todo aquele andar.

- “Magia...” – pontuou, admirando aquele fogo tão forte e encantador. O mago prosseguiu, deixando descansar as figuras petrificadas que pareciam observar seus movimentos. Deu alguns passos em direção à porta, mas parou. Virou-se como que atraído por alguma coisa, ou alguém. Correu a vista, não viu nada, ninguém além das calmas estátuas. Até que...
Encontrou-a... Uma pessoa?

Não, felizmente não. Os olhos de Lucian brilharam nostálgicos conforme contemplaram aquela figura, igualmente sólida e cinza, como o resto das estátuas na sala. Como o resto, sim, em partes. Mas ela era diferente, especial. A estátua de Selena Arkan emitia um brilho natural, reluzente, como se fosse de cristal. A imagem da bruxa com a varinha na mão e o olhar confiante chegava a arrepiar o jovem mago.

Lucian tomou coragem e fitou o olhar daquela rocha magnificamente moldada. Afinal, não passava de uma rocha, não é mesmo? Disso ele sabia, no entanto, a figura de sua mãe ali, encarando-o como que em tom de reprovação era deveras incômoda. Olhou mais uma vez, numa súplica silenciosa por perdão, sabia que era apenas imaginação, mas sentia que só poderia continuar com autorização da mãe. A estátua de Selena não respondeu, como já era esperado, mas um acontecimento que desafia a simples compreensão instigou a curiosidade do garoto: a luz da estátua brilhou mais forte, e o colar com um pingente em forma de pentagrama que carregava esquentou em seu peito. Aquele era o colar que tinha recebido de presente de sua mãe, um dia antes de sua morte. Não entendeu direito o que significava, mas aquilo bastava para fazer descansar tranqüila sua consciência. Encarou o brilho peculiar como um “sim” e retirou-se finalmente da torre, passando pelo pesado portão de ferro que selava a entrada.

Encontrou ali dois magos cansados, de guarda. Direcionando todos seus esforços para não chamar atenção indesejada, sussurrou mais expressões desconhecidas e induziu os dois sentinelas distraídos num curto período de sono. A consciência voltou a pesar-lhe. Não ficava feliz em enfeitiçar seus próprios companheiros, mas não havia espaço para reflexão e penitência no que tinha que fazer. Sua missão era fugir sem ser percebido, e, para isso, devia fazer tudo que fosse necessário.

A cidade parecia mergulhada num transe. O vago barulho de animais noturnos deixava-se soar em alguns pontos de vez em quando. Uma noite sem luar, uma noite mais escura do que as noites normais. Era isso que ele vinha esperando, era isso que tinha sido planejado, e era isso que estava para acontecer.

Lucian, o mago prodígio, filho da famosa arquimaga Selena Arkan, devia ignorar tudo que havia aprendido, todos ensinamentos de seus mestres e professores, e seguir seus instintos. Determinado, começou a caminhar, discreto e veloz, através das ruas sombrias da cidade que ainda dormia. Tinha pouco tempo, sabia disso. A entrada Oeste não estava muito longe, portanto apressou o passo. Abriu a mão esquerda – aquela que não segurava o cajado-, soltou mais palavras estranhas e números de fumaça formaram-se sobre sua palma.

Eram 4:40. Tinha em torno de 20 minutos para escapar sem levantar muitas suspeitas.
- “Vamos Lucian, mais rápido!” – falava consigo mesmo, aflito pela tensão de tudo aquilo.
Aos poucos os passos tornaram-se uma leve corrida, que tornou-se uma corrida intensa. O suor escorria aos montes, em parte pelo esforço físico, em parte pela pressão emocional. O mago limpou o rosto parcialmente com a manga da túnica e olhou para trás apreensivo. Chegara a tempo no portão, encontrando outros dois guardas noturnos...

Dessa vez fora visto:
- Ei! Alto aí! – exclamou o primeiro guarda, que aparentava ser um mago um pouco mais velho que Lucian, na faixa dos 20 anos.
- Que pensa que está fazendo? – bradou o segundo, aproximando-se com o cajado em punho.

Lucian não hesitou, como tinha que ser, e com um rápido movimento de mãos e lábios, o primeiro mago caiu no chão, desacordado. O segundo mal teve tempo de exclamar: “Senhor Lucian?” e encontrou o mesmo destino. Lucian não os matara, de forma alguma, muito pelo contrário, fez um favor evitando o confronto desnecessário que certamente resultaria na sua vitória de qualquer forma, ou pelo menos assim ele pensava.
Sem olhar para trás, atravessou o enorme portão e continuou correndo, passando também a enorme ponte que se elevava sob as águas calmas do rio Magi. Finalmente à uma distância relativamente segura, num ponto mais alto e afastado, Lucian vislumbrou – talvez pela última vez – o esplendor de Geffen. Sentiu-se nostálgico, até pensou em chorar, mas esse pensamento logo foi descartado.

Geffen era a cidade arcana, construída sob as cinzas da civilização de Geffenia. Lar dos magos e feiticeiros mais renomados de Rune-Midgard. Uma cidade mística que retinha os mais sombrios mistérios. Tal qual não era de se surpreender que, às 5 da manhã, a cidade já tomava ritmo de movimento – ainda que pouco. Mercadores surgiam dos becos escuros e montavam sonolentos as suas vendas de todos os tipos. Bruxos presunçosos desafiavam o sono e caminhavam imponentes nas ruas, apenas pelo prazer de admirar a cidade próxima ao nascer do sol.

- “Chega de demora.” – pensou determinado. Tudo teria sido em vão se fosse descoberto agora. Lucian virou-se, fitando o horizonte sombrio a sua frente. Não sabia o que lhe esperava, mas também não temia. Ergueu a cabeça satisfeito. Finalmente poderia seguir seu objetivo, sem empecilhos.

E o mago caminhou pela longa estrada, perdendo-se naquela noite sem luar, iluminado apenas pela luz gerada no cristal em seu cajado. Era aquilo, e fim. Aquela partida marcava o adeus à sua vida de sempre, aos seus amigos, família e à cidade que lhe servira de lar desde que nascera. E Geffen desapareceu aos poucos, oculta pelo véu da madrugada.


  

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